Capítulo 7
"Os Espíritos em expiação, se nos podemos exprimir dessa forma, são exóticos na Terra; já viveram noutros mundos, donde foram
excluídos em consequência da sua obstinação no mal e por se haverem constituído, em tais mundos, causa de perturbação para os bons." - O Evangelho Segundo O Espiritismo - capítulo III — item 14.
— Clarisse, apenas mais uma pergunta - rogou Inácio, desejando aprender mais na sua nova função de dirigente.
— Indague, meu irmão.
— A comunicação de Matias nesta noite trouxe-lhe benefícios?
— Imensos benefícios. Esse contato com a matéria, para um Espírito nesse estado, é de extrema importância. O organismo físico
é um depósito inigualável de energia ectoplásmica. A constituição molecucar desse pacote energético é impossível de ser clonada em nosso plano. É o estágio semimaterial das forças mais sutis que gravitam entre o perispírito e o corpo físico. Ela é gerada e sofre mutações importantes no duplo etérico do médium, em atendimento às necessidades mais prementes dos desencarnados.
Quando o médium se desloca do corpo, há uma natural expansão do duplo, também conhecida por cascão astral e por automatismo, esse pacote de forças é atraído para a constituição perispirítica da entidade comunicante que se lhe adere. É como se fosse a roupa do médium em outra pessoa. O duplo passa temporariamente a se acoplar ao espírito comunicante como um cobertor acolhedor.
Evidentemente, em razão da descompensação de forças mentais nas quais se encontra Matias, esse aporte do duplo etérico da médium vai servir como um legítimo balão de oxigênio, suprindo o que lhe falta até o limite em que não prejudique o equilíbrio da médium.
Os sinais mais característicos do momento da separação são sentidos pelo próprio aparelho orgânico do médium, por um desconforto registrado em forma de irritação ou fraqueza. Nesse momento, quando o médium tem suas faculdades sob controle, ele mesmo, mentalmente, faz a reconstituição dos corpos sem perder o contato com a entidade que, se necessário, ainda poderá manifestar seus pensamentos. Esse fenômeno que envolve o duplo etérico é chamado incorporação. São cedidas, portanto, as chamadas energias
vitais da vida material.
O comunicante, ao se retirar, fica com todo o seu corpo espiritual envolvido por uma espécie de pomada branca, ora em estado gasoso, ora gelatinoso. Os assistentes que orientam o trabalho utilizam-se dessa condição para as mais ricas medidas em favor do desencarnado. Volto a frisar, esse fenômeno é mais conhecido como incorporação.
Temos também o chamado vampirismo assistido, que é um processo no qual são envolvidos o corpo material, o duplo etérico, o
perispírito e o corpo mental. É algo ainda mais profundo que a incorporação, em que o vínculo deixa de ser puramente mental, chegando a níveis celulares no corpo do médium. Há, nesse caso, uma intensa transferência de forças vitais e uma interação entre o corpo mental do médium e da entidade com objetivos de recuperação de formas perispiríticas e sensações perdidas em milênios de padecimento.
O vampirismo assistido é uma técnica de automatismo que não comporta muito controle ou participação consciente do médium.
Por isso mesmo, só deve ser praticada em situações ocasionais e sob intensa supervisão espiritual. A espontaneidade é fundamental em
tal operação. É necessária uma entrega incondicional do sentimento e do corpo físico do médium. Mais uma razão para ser praticada
por médiuns mais experimentados, que já tenham disciplinado suas forças medianímicas, por possuírem noções mais claras dos limites
permitidos nesse gênero de trabalho. Por se tratar de transes profundos, nem sempre ele tem como aferir essa necessidade. Para suprir essa situação, é preciso uma equipe que tenha consciência do que está realizando. Que haja muito respeito e confiança, considerando que, em várias dessas situações, o médium terá de ser contido fisicamente, exigindo muita integridade moral de todos para essa finalidade.
Não será demais chamar esse contato mediúnico de uma autêntica "reencarnação relâmpago", na qual a entidade em desalinho, pela intensa ligação com o corpo físico do médium, desperta nas matrizes profundas do seu corpo mental algumas motivações evolutivas que o tempo e a dor lhe subtraíram. Casos existem nesse capítulo da mediunidade em que o acoplamento celular recompõe
instantaneamente formas perispirituais que poderiam levar séculos no trabalho de recuperação em nosso plano de ação. O corpo físico é uma usina divina de forças capazes de influir decisivamente nos corpos espirituais.
Ficou claro, doutor?
— Agradeço suas preciosas informações, Clarisse. Por hoje interrompemos nossa lição. Do contrário eu próprio pedirei internação aqui no sanatório.
— Esperança em seus corações, meus amigos e irmãos.
— Assim seja, amiga querida - falou Inácio com muita sensibilidade.
A nossa tarefa terminou. Todos os componentes da equipe ficaram em clima de expectativa. Habitualmente, doutor Bezerra se comunicava ao final confortando a todos nós. Naquela noite, porém, algo diferente ocorreu. Sentíamos sua presença e nada de manifestações ostensivas. Clarisse nos deixou com a sensação de uma convocação para novas lições, fato que, de alguma forma, nos surpreendeu.
A mensagem de Eurípedes passou a ser lida e estudada com mais constância por todos nós. Eu, particularmente, sempre solicitava mais explicações ao benfeitor, dele recebendo outras notícias sobre acontecimentos futuros.
A sabedoria apresentada por Clarisse, naquela noite, deixou-me também muito curiosa acerca de sua identidade e função junto ao Hospital Esperança. Permaneci fora do corpo durante todo o transe em estado de plena lucidez, acompanhando as informações tão oportunas. Até isso foi diferente na ocasião, já que tinha me acostumado à inconsciência no transe. Embevecida com tantos ensinos, passei a adotar, naturalmente, algumas posturas novas no intercâmbio mediúnico, solicitando a Inácio que passasse a fazer anotações contínuas de nossas atividades.
Dirigi-me para minha residência sem me desligar mentalmente da tarefa. Orei exaurida pela incorporação de Matias, conquanto me
guardasse no clima superior do dever cumprido. Assim que recostei a cabeça no travesseiro, emancipei nos braços de doutor Bezerra em direção ao Hospital Esperança.
Passava das vinte e três horas. Após a volitação instantânea, chegamos ao Hospital Esperança. Logo à entrada fui recepcionada por Clarisse e levada ligeiramente ao salão de cirurgias. Matias estava sendo operado.
Olhando através da vidraça, acompanhei a cena com extrema emoção. O corpo espiritual de Matias estava envolvido pela substância esbranquiçada do ectoplasma emanado durante a incorporação. Como havia explicado Clarisse, parecia uma pomada gelatinosa. Já não senti rejeição como da primeira vez, mesmo porque em tão curto tempo a fisionomia de Matias estava amplamente renovada.
Nos mesmos moldes da cirurgia terrena, havia instrumentais diversos. Foi iniciada a intervenção.
Há quem suponha que o perispírito sendo um corpo plástico, obedeça incontinenti a todos os comandos da vida mental em quaisquer situações, como se bastasse a oração e pronto! Existem, sim, situações em que apenas comandos de sugestão mental são suficientes para alterar a roupagem fluídica do espírito.
Quem fuma, por exemplo, no corpo físico, durante cinquenta anos, se não tiver a bênção do reencarne imediato, levará tempo similar
para erradicar do aparelho respiratório, no corpo espiritual, os efeitos indesejáveis do tabaco, caso tenha méritos para iniciar esse
tratamento tão logo desencarne. O enfisema tem raízes nas células perispirituais, efeitos da destruição lenta, gradativa. Através de
sucedâneos e de moderna tecnologia são feitas incisões nos centros de força laríngeo e cardíaco, que permitem acentuada redução da
compulsão de fumar.
Esse corpo plástico obedece também a mutações que resultam de adaptações milenares a temperaturas, flora e fauna microscópicos e,
sobretudo, a estados mentais crônicos.
O objetivo da cirurgia de Matias era remodelar a carcaça torácica já mais livre daquela condição animalizada, e retirar alguns chips de hipnose implantados em seu cérebro. A incorporação da noite, conforme informação de Clarisse, recolheu uma reserva de "matéria" necessária a todas essas medidas de uma só vez. Algo um tanto raro e que me deixou emotiva ao saber.
Cortes profundos nas camadas semimateriais do corpo espiritual deixavam fluir borbotões de sangue. Tudo igual aos quadros cirúrgicos humanos. A diferença ficava por conta da recomposição mais acelerada dos tecidos e da tecnologia avançadíssima em relação ao mundo terreno. Algumas incisões eram cicatrizadas na
hora, com uso de bisturis de raios luminosos, que mais tarde viria a se saber serem proje-tores quânticos capazes de alterar a constituição molecular da matéria, organizando-a conforme plantas
cromossômicas previamente estudadas por técnicos de genética bioplasmática, programadas para uso dos médicos em suas
cirurgias. Cada paciente com sua planta individual. O computador, que a esse tempo não havia surgido no mundo físico, já era usado com recursos potentes que antecediam em pelo menos cinquenta anos as descobertas e invenções humanas.
Observava atentamente, enquanto Clarisse, a meu lado, vez por outra, explicava-me alguns detalhes do caso. Ela estava nitidamente
emotiva.
Em certa etapa, já que podia ouvir tudo o que diziam os cirurgiões, um deles, sabendo de minha presença ali, mencionou meu nome e
disse: "Se tivéssemos mais médiuns dispostos a oferecer seu corpo físico a esse mister, certamente teríamos nosso trabalho mais
facilitado como o dessa hora e, o mais importante, obteríamos resultados promissores, como o que aqui constatamos. Dia virá em
que os médiuns espíritas reconhecerão o corpo físico como a usina mais poderosa de energia à disposição do ser humano para uso no bem".
Já se passavam cinquenta minutos de minuciosas ações no perispírito de Matias. Orava contrita pela iniciativa, quando um chamado inesperado convocou Clarisse aos portais de saída de Hospital Esperança.
Convidada a ir junto, não pestanejei. Deixei a vidraça, pedindo a Deus que abençoasse Matias em sua recuperação.
Chegando aos portais, Clarisse foi esclarecida por Cornélius:
— Recebemos um pedido de urgência dos abismos. Eurípedes está ferido e houve uma reação bem organizada dos ciclopes nos
paredões de penitência no Vale do Poder.
— Vamos partir imediatamente! - afirmou Clarisse.
- Dona Modesta nos acompanhará.
Sem se opor à minha presença, partimos em direção às furnas do mal. Clarisse, eu, Cornélius e mais um grupo de defesa do Hospital
Esperança.
Chegando ao local, presenciei algo inusitado. O ciclope da mitologia grega não era pura imaginação. Indaguei de chofre:
— Quem são os ciclopes, Clarisse?
— Espíritos rudes a serviço do mal. Estamos na região subcrostal chamada Pântano das Escórias, subúrbio enfermiço do Vale do Poder.
Aqui são feitos prisioneiros os servidores da maldade organizada que não obtiveram êxito em seus planos nefandos. Castigos e sevícias de todo o porte são levados a efeito nestas plagas.
— Por que viemos aqui?
— Venha! Vamos encontrar nossa equipe.
Logo adiante estava Eurípedes com uma equipe de vinte a trinta defensores. Tinha o braço ferido. Quem imagina os espíritos isentos
dessa contingência, não concebe com exatidão os mecanismos fisiológicos e anatômicos do corpo espiritual, sujeito, nas proximidades vibratórias da Terra, às mesmas injunções de saúde e doença, dor e prazer. Um corte de dez centímetros na altura do ombro do benfeitor era cuidado com carinho por uma diligente enfermeira da equipe. A diferença ficava por conta do domínio mental. Enquanto era tratado, conversava atentamente com os presentes sem demonstrar uma nesga de sofrimento. Os ciclopes o feriram com seus chicotes impiedosos. Tive ensejo, ali mesmo, de
manifestar meu carinho ao amigo querido. Embora minha surpresa, o tempo e a experiência foram me mostrando que tudo era possível ocorrer em tais tarefas socorristas. Incêndios, tiroteios, ciladas, guerras armadas e outras tantas manifestações de violência já conhecidas da humanidade. Não cheguei a ver os ciclopes naquela ocasião, mas só a onda de crueldade deixada no ambiente já me apavorava.
Clarisse não regateava esclarecimentos a mim.
— Estamos no inferno de Dante, dona Modesta.
— Parece-me ser até pior do que ele descreveu.
— Sem dúvida.
— O que faremos agora?
— A tarefa por aqui já está cumprida. As entidades que necessitavam de socorro já foram levadas para onde prosseguirá o trabalho.
— Eram almas arrependidas?
— Não. Eram escravos da perversidade. Servidores inconscientes das sombras. Foram necessárias mais de quatro horas de intensas iniciativas para alcançar resultados no amparo. Ainda assim, veja o estado de nossos companheiros. Eurípedes ferido, os defensores exaustos e tudo isso apenas para que seis entidades pudessem ter acesso à manifestação mediúnica.
— Vão se comunicar a essa hora da noite? Que centro abriria suas portas? - expressei sabendo que já passava da meia-noite no relógio terreno.
— Os verdadeiros servidores cristãos só se utilizam do relógio com intuito disciplinar. Não condicionam o ato de servir aos ponteiros
limitantes do tempo. Visitaremos o Centro Umbandista Pai Guiné, nos arredores de Uberaba.
— O pai-de-santo Ovídio?
— Ele mesmo.
Tive de confessar, em um primeiro momento, meu preconceito. Guardava respeito pelas demais religiões, entretanto, nunca havia
refletido sobre quem seriam e onde estariam as cartas vivas do Cristo. Por uma tendência natural asilei o despeito. Ainda bem que
foi algo muito passageiro em meu coração, porque as experiências fora e dentro da vida corporal, cada dia mais, apresentavam-me
uma realidade distante das ilusões que adulamos sob o fascínio impiedoso do orgulho na sociedade terrena dos mortais.
Após as despedidas, a equipe de Eurípedes regressou ao hospital. O pedido de socorro foi uma medida preventiva. Apesar dos feridos e
exaustos, todos guardavam o clima da paz.
Por nossa vez, partimos para o Centro Pai Guiné. Era um ambiente agradável em ambos os planos. Ao som dos atabaques, eram
cantados os pontos em ritmo vibratório de alta intensidade. Cada canto era como uma verdadeira queima de fogos de artifício. Uma
bomba energética explodia no ar em multicores.
Em uma das várias dependências astrais da casa havia uma enfermaria com oitenta leitos bem alinhados. Tudo nesse salão era limpeza e calmaria. Lá não se ouviam mais os cantos, e a conexão com o plano físico limitava-se ao trânsito de enfermeiros pelos vários portais interdimensionais. Regressamos ao ponto de
intersecção vibratória com o plano físico.
Seis macas estavam dispostas no canzuá (terreiro). Em cada qual havia uma entidade de aspecto horripilante. Olhos que quase saíam
das órbitas oculares, pele murcha, enrugada e suja, garras enormes no lugar das unhas, com dez centímetros, nas mãos e nos pés, todas
retorcidas como as de águia. Magérrimos e nus. Causavam náuseas pelo odor. Olhavam para nós deixando claro que nos viam e, literalmente, grunhiam como porcos com a boca semiaberta. Alguns deles estavam muitos inquietos nas macas. Retorciam-se como se
estivessem com dor, sem manifestar nenhum som. Vários hematomas estavam expostos em todos eles, devido aos castigos impostos nos paredões de penitência.
— As garras são colocadas para impedir a fuga. Não andam nem têm grande habilidade manual - informou Clarisse, com manifesto sentimento de piedade.
— Como serão socorridos?
— Pela incorporação profunda ou vampirismo assistido.
— Nos médiuns umbandistas?
Mal terminei a pergunta e vi uma cena nada convencional. Um dos enfermeiros da casa pegou uma das entidades no colo e jogou-a no
corpo do médium.
Demonstrando câimbras na panturrilha, o médium, incontinenti, absorveu mental e fisicamente o comunicante que se ajeitou no
corpo do medianeiro como se deitasse em um colchão, buscando a melhor posição. Os atabaques aceleraram o ritmo, criando um
frenesi de energia no ambiente. Formavam-se pequenos redemoinhos de cor violeta e prata, que se desfaziam e refaziam em vários cantos do terreiro. Modulavam conforme a nota musical dos hinos cantados.
O médium estrebuchou no chão. Convulsões e grunhidos seguidos de gritos de dor. Ovídio, o pai-de-santo aproximou-se e disse:
— Oxalá proteja seus caminhos, filho de Zambi (Deus)
— Eu sou filho do capeta. Quem és tu para falar comigo? - redarguiu a entidade, que agora falava com facilidade por intermédio do médium.
— Sou um tarefeiro da luz.
— Eu sou uma escória da sombra.
— Engano, criatura!
— Não vê minhas garras? Sabe o que isso?
— Conheço essa técnica. São ferrolhos do mal.
— Vejo que estais acostumados ao mal.
— Vim desses vales da sombra e da morte - falava Ovídio com firmeza na voz.
— Mas andas e és livre. Estais no corpo, enquanto eu... Eu sou um verme roedor... Ou quem sabe uma águia que não voa... Nem
sequer consigo andar graças a essa maldição que colocaram em meus pés... Nem comer mais... Veja minhas mãos... Eu tenho fome e
sede.
— Em que te posso ser útil irmão? - indagou Ovídio debaixo de uma forte vibração.
— Quero bebida e comida. Quero que cortem minhas garras.
— Laroyê! Laroyê! - gritou Ovídio já incorporado por um de seus guias que entoava o canto: "Eu sou Marabá, rei da mandinga. Eu sou Marabô, exu de nosso Senho. Laroyê!"
Uma energia colossal movimentou-se com a chegada do Exu Marabô. Os filhos-de-santo o saudavam com palmas rítmicas e pontos próprios da entidade. Muitos deles iam até Marabô, baixavam a cabeça em sinal de reverência à sua frente e batiam três palmas rítmicas na altura do abdômen do médium.
— Que tu quer, homem esfarrapado. Bebida pra mode se arrebenta mais?
— Não, senhor Marabô. Não é isso não.
— Não mente pra Marabô. Marabô sabe ler os ói (olhos). Nos ói tá a visão, mas tá também a verdade e a mentira.
— Eu não minto, senhor. Quero liberdade.
— Pra fazer o que dá na cabeça? Home tu preso é um perigo, livre é um desastre.
— O que o senhor vai fazer por mim? Não pedi a ninguém pra sair daquela joça de lugar fedorento. Por que me trouxe aqui?
— Não fui eu quem trouxe home. O veio Bezerra da luz é teu protetor. Sirvo a ele na graça de Oxalá, Pai de poder e misericórdia.
— Que queres comigo?
— Está feliz na matéria do cavalo (médium)?
— Sei que não é minha. Quero uma só pra mim.
— Esta gostando do contato?
— Só farto bebida e comida.
— Olha suas garras.
— Não pode ser! O que aconteceu?
— O cavalo tá dissolvendo suas algemas.
— Pra sempre?
— Pra sempre!
— Quanto vai me custar?
— Nada. É serviço de Pai Oxalá. É de graça. Pedido do veio Bezerra de Menezes. Se voltar pro inferno, elas crescem de novo. Se subir
com Bezerra da luz, vai ser cuidado no hospital da sabedoria, onde reina os filhos de Gandhi.
— Filhos de Gandhi? Por que se interessaria por escórias como nós. Veja lá nas macas os amigos estropiados - e apontou para a sala ao lado.
— Nada retira do ser humano a condição de Filho do Altíssimo.
***
Nota da editora - saudação típica aos exus, espíritos que atuam como policiais ou guardiões no mundo espiritual.
Nota da editora - uma linha de exu.
***
Dita essa frase, o espírito comunicante silenciou, enquanto o Exu Marabô fazia alguns rituais em cima do corpo do médium.
Instantaneamente, o médium convulsionou-se. Quatro auxiliares no plano físico continham o medianeiro a duras penas. Não sendo o
suficiente, mais três se aproximaram. Olhando de cá, não se sabia mais quem era o médium e quem era o desencarnado. Uma gosma saía pelas narinas e pela boca. Espasmos e taquicardia intensa eram aferidos por médicos atentos que monitoravam o médium e a entidade. O fenômeno era totalmente supervisionado. As unhas da mão e dos pés do comunicante sangravam. As garras foram
arrancadas até a raiz. Dores intensas e muita confusão mental assinalavam seu estado geral. Sedativos potentes foram aplicados no corpo espiritual do médium, diluindo no corpo do assistido. Repentinamente uma calmaria. Cessaram as convulsões. Na medida
em que o médium recobrava os sentidos, a entidade os perdia. Ajudado por integrantes do Centro Umbandista, o médium levantou-se vagarosamente e foi colocado em um pequeno colchão para refazimento. Em nosso plano, padioleiros disciplinados repetiram o procedimento com todos os outros cinco doentes de uma só vez em cinco médiuns distintos que, ao mesmo tempo, receberam os demais prisioneiros dos vales sombrios.
Após os serviços de higiene e primeiros socorros, ainda na enfermaria do Centro Umbandista, Clarisse convidou-me para o
primeiro contato com aquela criatura. Cornélius que se encontrava entre nós durante todo o trajeto, desde a saída do hospital, foi o
responsável pelo diálogo.
— Como está agora meu filho? Agora já consegue falar como um humano, filho do Pai.
— Filho? - mesmo sedada a entidade dava mostras de inteligência. - Não sou seu filho. Sou um carrasco.
— Ainda assim, filho de Deus e nosso irmão.
— Que ladainha é essa? Quem é você?
— Sou Cornélius, não se lembra?
— O mergulhador do lago de enxofre?
— Isso mesmo.
— Então foi você quem nos tirou daquela lama fétida!
— Em nome de Jesus Cristo e doutor Bezerra.
— Agora veio cobrar o preço pelo trabalho que não paguei. Quanto o tal Bezerra quer?
— De jeito algum. Trabalhamos por amor.
— E quer que eu acredite nisso!
— Não! De você só quero uma coisa.
— Sabia que viria algo em troca. Nada nesse mundo é de graça!
— Quero que fique bem e restaure sua paz.
— Acredita mesmo que um dia vou conseguir isso? O Exu lá na matéria falou de um hospital. É a casa do Barsanulfo?
— Sim, é lá mesmo.
— Muitos amigos da lama querem se tratar lá. Não sabemos como chegar. Você, por acaso, vai me dar o endereço?
— Vamos te levar lá, apenas isso! Nosso intuito é te livrar dessa escravatura e, igualmente, àqueles que você, sem querer, prejudica.
— A quem prejudicamos?
— Em especial, nosso irmão H.
— Ah! Então é isso! A preocupação de vocês é com o doutor H., aquele magnata do Espiritismo!
— Com ele, mas com você também.
— Acha mesmo que os mandantes vão parar? A gente sai e eles arrumam novos capatazes. O doutor H. é um devedor. Fez parte das fileiras...
— Nosso irmão, como qualquer um de nós é um batalhador em busca de remição. A perseguição a ele infligida ocasionou consequências mentais e emocionais graves.
— Ele merece. É um orgulhoso de carteirinha. E, de mais a mais você sabe de onde ele veio.
— Qual de nós, meu filho, não tem histórias e dramas com o inferno?
— Creio que o melhor é aceitarmos que a Terra é do demônio.
Assim todos serão felizes.
— Assim todos serão iludidos até se atolarem na maldade como meio de justiça.
— Pois é... E como ser diferente? Quem olha por quem, não é mesmo?! Tudo é interesse. Egoísmo.
— Nós estamos aqui olhando por você. Nosso interesse é você, seu bem-estar.
— E logo vão me apresentar uma farta conta, não é mesmo? Só de injeção devo ter tomado umas dez! Qual será o preço disso?
— Não queremos nada. O tempo e a sua recuperação serão as melhores respostas para sua ironia em nos intimidar. Por agora
quero que descanse. Amanhã você já acordará no Hospital Esperança.
—Acha mesmo que mereço ir a esse paraíso?
— Lá não é um paraíso, meu filho. Ao contrário, é lugar de almas arrependidas. Um purgatório de culpas e dores acerbas. Não fossem as expressões do amor que lá vigoram, seria algo muito similar ao lugar de onde você veio.
— Amor? E você ainda acredita nessa mentira? Amor é uma velha estratégia de poder. Diga-se de passagem, cada dia mais fraca e sem
alcance. O tal Eurípedes e Jesus podem desistir desse método de convencimento. A Terra está perdida!
A entidade ainda fez uma fisionomia de deboche, mas não conseguiu reagir aos sedativos. Adormeceu. Ouviam-se ainda os
cantos no Centro Umbandista. Desta vez dirigidos a Oxumaré e Oxalá para acalmar o ambiente. Passavam de duas horas da
madrugada. Impressionou-me o vigor dos médiuns umbandistas. Ao voltar para seus lares, brincavam como crianças sem nenhuma
menção ao labor ora realizado. Desprendidos da doação e com extremo bom humor. Ovídio e sua esposa levavam em seu automóvel as senhoras mais idosas. Os mais jovens seguiam a pé pelos matagais em direção às zonas rurais de Uberaba. Todos assistidos por nobres entidades do amor e do bem em nome de Bezerra de Menezes. Heróis anônimos de um tempo de coragem e pura espontaneidade. Por nossa vez, seguíamos para o hospital, pois a atividade ainda era intensa. Já se aproximando a manhã, foi a própria Clarisse que me procurou e disse:
— Imagino que esteja curiosa sobre muitas das ocorrências desta noite, dona Modesta.
— Clarisse, sinto-me como se estivesse em um país distante e, ao mesmo tempo, tão próximo. Não sei o idioma, não conheço ninguém, enfim, estou mentalmente sem referência, embora tudo me seja muito familiar.
— É assim mesmo! Quando nos está reservada uma missão, inicialmente, ficamos atordoados e inquietos sem entender claramente os motivos. Tudo o que a senhora tem presenciado será
o alicerce de uma grande tarefa, que reunirá velhos compromissos da caminhada.
— Ciclopes, escórias, lago de enxofre, irmão H., feridas em Eurípedes, a maldade calculada...
— São muitas novidades, não é, dona Modesta?
— Parece-me outro mundo, mas ao mesmo tempo a sensação é a mesma que sinto quando no corpo físico. Por várias vezes manifestei tais impressões ao meu marido e familiares. Concluí que somente eu as sinto. Isso é a mediunidade, Clarisse?
— Sem dúvida. Somente com essa faculdade da alma ampliada somos capazes, mesmo estando no escafandro do corpo físico, de
registrar a realidade da psicosfera que cerca a humanidade. De fato, o ambiente espiritual da Terra avança para lamentáveis e decisivos
episódios que determinarão mudanças inadiáveis no planeta. O joio, mais que nunca, surgirá nas benfazejas plantações de trigo,
confundindo os incautos, desafiando os inteligentes e convocando os que amam aos mais duros testemunhos em favor do futuro
regenerativo da humanidade. Esse é o motivo de trabalharmos com desvelo por tais carentes da alma.
— Pensei, ao conhecer o Espiritismo, que teria sossego; que a tormenta mental viesse a cessar por completo.
— Dona Modesta, nas linhas de serviço do Cristo é justo que o trabalhador devotado colha o fruto íntimo do sossego interior, em face dos esforços de ascensão moral. Todavia, nossa condição espiritual é muito grave para sonhar com facilidades e conforto. Em nosso ciclo de lutas evolutivas, raramente escapamos de interpretar sossego como satisfação pessoal garantida, interesse particularista. Quem segue Jesus deve ter como lema fundamental o ato de servir e aprender, educar e trabalhar. Quem foge desse movimento divino de ascensão, carregando na alma tão severos compromissos
conscienciais, como nós, certamente se renderá ao fascínio da obsessão, confundindo felicidade com facilidade.
— Preciso me acostumar a esse conceito.
— Ele está em sua alma. É uma questão de tempo para que a crisálida se rompa e permita o voejar das nobres conquistas de seu
coração. Sugiro que, antes de regressar ao corpo, a senhora desonere a mente das perguntas que a torturam.
— Farei algumas para aliviar minha inquietação. Elas são muitas. Os ciclopes e aquele lugar infeliz são obras dos dragões?
— Existe amor nos pântanos, dona Modesta. Muitas são as Moradas do Pai. Ali se encontram os diamantes no lodo. Quaisquer denominações que usemos para classificá-los não passam de mera contingência didática. São filhos do mesmo Pai que tutela nossa caminhada ao progresso. O Sol não escolhe onde refletir seus raios luminosos. Abençoa a gleba, mas igualmente irradia sobre os lamaçais nos abismos. Existe amor nos abismos. Os locais visitados esta noite são criações suburbanas da Cidade do Poder. O Vale do Poder é um resíduo social, um efeito inevitável de uma estrutura
comunitária rebelde às leis divinas. É a estrada marginal aos principais acontecimentos históricos nessas localidades em milhares
de anos. Os ciclopes e todos os componentes dessa organização são metamorfoses mentais a que se submetem quantos se rendem às
sugestões do mal. Tudo que surge nesses pátios tem algo a ver com os dragões. São eles, por assim dizer, os gestores dessas ilusões de
poder e domínio. Os ciclopes são muito violentos.
— E se tem a ver com eles, tem algo com a doutrina!
— Exatamente.
— Por isso a perseguição ao doutor H., nosso irmão no Rio de Janeiro?
— Sim, dona Modesta.
— Nutro por ele elevado reconhecimento pelos serviços que desenvolve. Temos nos correspondido ocasionalmente.
Compilado por Márcio Varela
Extraído do livro Os Dragões - O diamante no lodo não deixa de ser diamante - Médium Wanderley Oliveira - pelo espírito Maria Modesto Cravo
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