A concomitância dos horizontes agrícola, civilizado e profético, no mundo hebraico, proporciona as condições necessárias ao aparecimento do horizonte espiritual. Essa a razão histórica, mesológica e psicológica do imenso poder do Cristianismo, transformador e renovador do mundo. Nenhuma das religiões orientais que invadiram o mundo grecoromano, como nenhuma das correntes filosóficas do helenismo, trazia consigo essa perspectiva nova, que oferecia ao homem a ampliação do seu poder conceptual, permitindo-lhe enxergar além dos horizontes que circundavam o mundo agrário, o mundo civilizado e o próprio mundo profético. Todas as explicações materialistas sobre a vitória do Cristianismo, a partir da derrocada do mundo antigo, sofrem da mesma estreiteza visual que caracterizava os povos da época, em face da espiritualidade hebraica. Assim como os “goyn” não compreendiam Israel, e assim como os próprios israelitas não compreenderam o Cristo, assim também o pensamento pragmatista, positivista ou materialista, de hoje, não pode compreender o sentido e a natureza do Cristianismo, que atinge no Espiritismo a sua mais perfeita expressão, e os cristãos formalistas não compreendem a natureza e o sentido libertários do movimento espírita.
Da mesma maneira por que o grego e o romano consideravam supersticiosas as práticas religiosas judeu-cristãs, e o judeu, por sua vez, considerava heréticas as ideias libertárias do Cristianismo, os homens “cultos” e os “religiosos” de hoje formulam acusações semelhantes aos espíritas. Tudo se explica pela teoria dos horizontes culturais. O homem que se mantém fechado no círculo do horizonte civilizado, apegando-se aos “bens de civilização”, segundo a expressão de Kerchensteiner, não abre os seus olhos e a sua mente para as perspectivas mais amplas do horizonte espiritual. O esquematismo cultural e o dogmatismo religioso, com seus respectivos sistemas rituais, oferecendolhe uma riqueza concreta e imediata, muito superior à do passado, absorvem-lhe a atenção. A individualização social, longa e dolorosamente conquistada, defendese de qualquer ameaça de
desequilíbrio ou dispersão. O instinto de conservação do indivíduosocial ajuda-o a
concentrar-se nos bens de cultura da civilização, mas ao mesmo tempo impede-lhe o avanço na espiritualização.
Nada melhor, para nos esclarecer esse fenômeno, que a teoria dialética da cultura, formulada por Kerchensteiner, com as teses da cultura objetiva e subjetiva. O indivíduosocial é um produto da cultura objetiva, cercado dos bens de cultura que constituem objetivamente a civilização. Mas acima da civilização pairam os ideais e as aspirações do espírito humano, sôfrego por evoluir e se libertar dos esquemas por ele mesmo construídos. À ideologia dominante opõese a utopia desejada, no contraste histórico de Mannheim. E somente os indivíduos capazes de romper o círculo dos bens de cultura podem conceber a utopia como alguma coisa transcendente e não imanente a esses bens. Essa capacidade de transcendência é
comum a todos os homens, mas só atinge a sua plenitude na proporção em que o
indivíduo-social rompe o casulo das convenções, em que gostosamente se fechou,
para abrir as asas de borboleta da individualização mediúnica. Depois disso, poderá tornar-se, e forçosamente se tornará, um indivíduo espiritual. Foi o que aconteceu
com os profetas hebraicos. O horizonte agrícola da Palestina, com a vida agrária dos cananitas, não foi abafado pela invasão judaica. O próprio Abrão, ao partir de Ur, na companhia de seu pai Terá, já conjugava em sua mente os dois horizontes. Segundo acentua Woolley, no século XII antes de Cristo, os hebreus que residiam nas proximidades de Ur constituíam uma pequena colônia de pastores e agricultores. Viviam no horizonte agrícola, mas ao lado de urna grande cidade, cujos bens de cultura naturalmente absorveram. Assim, os hebreus não tiveram dificuldade em construir na Palestina, sobre o mundo agrícola ali encontrado, o mundo civilizado que haviam herdado lá fora. Mas a cultura subjetiva dos hebreus, desenvolvida através de um processo religioso mais profundo que o mesopotâmico, propiciou-lhes o avanço imediato para o horizonte profético.
A tônica da tendência religiosa hebraica responde pela característica espiritual do profetismo, que atinge a sua maior amplitude graças ao fato histórico da vulgarização do monoteísmo. Aquilo que não pôde ocorrer na Pérsia, na índia, na Grécia ou na China, — em virtude da dispersão das forças espirituais no politeísmo — ocorreu na Palestina, em virtude da concentração dessas forças no monoteísmo. Os bens de cultura das civilizações orientais, concretizados nas suas fórmulas, nos seus ritos e nos seus deuses, consolidavam a individualização social e davam ao indivíduo uma rigidez mental que não lhe permitia a visão espiritual. A cultura subjetiva dos hebreus, ou seja, o seu refinamento espiritual, que os conduzia à concepção universal do Deus Único, favorecia-lhes, ao contrário, a transição do indivíduosocial para o indivíduomediúnico. Foi por isso que Isaías conseguiu enxergar além da utopia “concreta”, que os hebreus puderam sonhar com a Jerusalém Celeste, enquanto os outros povos sonhavam com o paraíso persa, cheio de prazeres e delícias terrenas, e o próprio Platão idealizava uma República terrena, concreta.
A individualização mediúnica abriu as portas da espiritualidade para os hebreus, permitindo a criação, na Palestina, do clima necessário ao advento do Messias, d’Aquele que devia trazer, não mais as “messes” da terra, mas as do céu. O
Evangelho representou a grande ceifa desses bens celestes, bens subjetivos, na seara mediúnica da cultura subjetiva. Isso explica por que o povo hebreu podia considerar
se eleito e por que o seu domínio devia estender-se a todos os povos. Deus multiplicaria, graças à individualização mediúnica, os filhos de Abrão por toda a terra. A simbologia bíblica encontra a sua interpretação histórica nos estudos espíritas da evolução humana. Os estudos materialistas, não atingindo a dimensão espiritual do homem, encravam no concreto, na cultura Objetiva, e não encontram outra saída senão a superstição, para explicarem os sonhos judaicos de expansão universal.
(Extraído do livro: O Espírito E O Tempo. Capítulo IV - Horizonte Profético: Mediunismo Bíblico - Individualização mediúnica)
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