sexta-feira, 11 de abril de 2025

Superação do gregarismo - Capítulo 1


Escrito por J Herculano Pires

O gregarismo primitivo permanece, como vimos, até o horizonte agrícola, passando ao horizonte civilizado, ainda bastante vigoroso. Mas neste último já se verifica a ruptura da homogeneidade gregária, com o aparecimento do individualismo. Os homens tomam consciência de si mesmos, de sua potencialidade individual, e vão aos poucos rompendo as malhas do rebanho. O exemplo e o ensino dos mais adiantados estimulam os que vêm na retaguarda, e a fascinação do domínio próprio, o prazer e a novidade do controle autônomo, encorajam os que se iniciam na individualização. 

O horizonte profético, que assinala o avanço da humanidade além do horizonte civilizado, é o mundo da individualização. Assim como a criança, ao tomar consciência de si mesma, após a primeira infância, mostra-­se encantada com a possibilidade de se dirigir sozinha e fazer o que quer, assim também o homem­ gregário, resultante natural da evolução do homem-­tribal, encanta-­se com as possibilidades da individualização. Nada mais justo, portanto, que os excessos e abusos que caracterizam o indivíduo greco-­romano e o profeta hebraico. Eles manejam um instrumento novo, uma nova máquina, e se embriagam na liberdade recém-­adquirida. Liberdade é bem o termo, pois a individualização representa a libertação do  rebanho. O homem que se individualiza aprende a pensar por si mesmo, a escolher, a julgar, não se submetendo mais aos moldes coletivos. Ao mesmo tempo, liberta-­se dos instintos, da força absorvente das necessidades da espécie, que o escravizaram no gregarismo. A capacidade de abstração mental libertou-­o do concreto, da sujeição à matéria. A capacidade de formulação de juízos éticos, jurídicos e religiosos, transformou-­o em juiz da tradição, do meio social e de si mesmo.

O poder de racionalização o erigiu em senhor da sociedade e da natureza. Nada mais justo que ele agora se imponha ao mundo, em vez de submeter-­se às contingências e às circunstâncias. Descobrindo o seu próprio poder, e conquistando a habilidade de manobrá-­lo a seu talante, o homem civilizado eleva-­se ao plano do profetismo. Já não é apenas uma ovelha do rebanho humano. É alguém que ergueu a sua cabeça sobre a turba e viu­-se capaz de julgá­-la. Essa nova condição explica o aparecimento, no mundo que se estende, mais ou menos, do século nono ao terceiro, antes de Cristo, das grandes individualidades de sábios, místicos, poetas e profetas, numa vasta área de grande desenvolvimento da civilização. Murphy entende que essa área abrange o chamado Fértil Crescente, que vai da Grécia e o Egito, passando pela Palestina e a Mesopotâmia, até a índia e a China. Nos limites de tempo e espaço assim configurados, vemos brilharem a filosofia grega, o profetismo hebraico, o misticismo hindu e o moralismo chinês. Atrás deles, como pano de fundo, estão o patriarcalismo mesopotâmico, o sacerdotismo egípcio e o magismo persa. 

Abrão, como já vimos, era um herdeiro do horizonte civilizado mesopotâmico, levando consigo, ao deixar a cidade de Ur, a bagagem dos bens ­de­ cultura ali adquiridos. Moisés, por sua vez, era um herdeiro da civilização egípcia. Aquenáton e Zoroastro projetavam suas luzes sobre os patriarcas hebreus, através da poderosa influência das civilizações egípcia e persa. Muito natural, portanto, que os hebreus, ao implantarem o seu  domínio em Canaã, estabelecessem ali, ao mesmo tempo, o horizonte civilizado, que traziam como herança, em mistura com o horizonte agrícola encontrado na terra, e sobre ambos abrissem as perspectivas do horizonte profético. Murphy assinala essa curiosa simultaneidade, que confirma a tese de Augusto Comte, sobre a mistura de elementos dos três estados: teológico, metafísico e positivo, em cada um desses mesmos estados. O horizonte profético atingiu, entre os hebreus, a sua culminância, mas nem por isso se apresenta em estado de pureza ideal. Muito pelo contrário, nos momentos de maior brilho do profetismo hebraico, os resíduos do horizonte agrícola fazem sentir poderosamente a sua presença. E assim tinha de ser, pois a evolução social, mental e espiritual do homem se desenvolve como um continuum, sem solução de continuidade. A nossa razão é que a fragmenta, como no caso da duração e do tempo bergsonianos, para atender às deficiências do nosso poder de percepção e compreensão do processo total. Os motivos da culminância do horizonte profético entre os hebreus, segundo nos parecem, e considerando-­se a hereditariedade histórica já apontada, podem ser assim discriminados:

1)  Aceitação popular do monoteísmo, pela primeira vez na história, e consequente individualização da ideia de Deus;

2)  Acentuação dos atributos éticos de Deus;

3)  Estabelecimento de ligações diretas do Deus individual com o indivíduo humano; no caso, o profeta. Essas mesmas razões farão do profeta hebreu, como veremos logo mais, um indivíduo tridimensional, de individualização mais poderosa que o indivíduo grego e o seu herdeiro romano.

(Extraído do livro: O Espírito E O Tempo. Capítulo IV - Horizonte Profético: Mediunismo Bíblico - Superação do gregarismo)

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